Olá! Eu sou a psicóloga Luiza Aguiar e este é o episódio número onze do podcast “Ansiedade em foco”.
Semanalmente eu e um convidado informamos você, psicóloga clínica, que deseja aprender como a ansiedade pode ser tratada por diferentes profissionais da saúde, de maneira individual ou colaborativa.
Como dia 10/11 foi o Dia Nacional da Surdez, o foco deste episódio será as pessoas surdas. A convidada é a psicóloga Hilda Camile Santos Costa (CRP 03/20169).
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– Luiza: Camile, conte para as psicólogas ouvintes um pouco mais sobre você e o seu trabalho!
– Camile: Oi, Luiza! Primeiramente eu gostaria de agradecer por esse convite para estar aqui. É uma honra falar sobre o meu trabalho. Bem-vindos aqueles que nos acompanham também! Sou Camile, psicóloga baiana, surda oralizada e com dois aparelhos auditivos.
Quando eu nasci tive icterícia hospitalar e, por causa dos antibióticos, a minha audição foi afetada. Com isso, até os meus três anos eu não falava, não atendia nenhum comando. Disseram para a minha mãe que eu era “surda, não era normal”. Pois ela foi em busca de profissionais e encontrou uma fonoaudióloga que me diagnosticou com surdez neurossensorial bilateral moderada a severa e, por dez anos, fez o acompanhamento para eu conseguir falar como falo hoje. Foi assim que a minha minha jornada começou: com escola inclusiva, educação e atenção dos meus pais, presença e eficiência de todo trabalho voltada ao meu desenvolvimento.
Eu tinha um sonho desde pequena de ajudar crianças que têm deficiência, mas não tinha noção que era a Psicologia. Eu achava que era Medicina – que no final das contas não cursei. Realmente fiz Psicologia e lá dentro da faculdade, estudando, vendo e vivenciando tudo, me despertou o interesse para a área inclusiva, desenvolvimento infantojuvenil, deficiências.
A minha infância e adolescência foram marcadas por traumas que abalaram a minha autoestima, identidade e autonomia, pela forma como me relacionava com outras pessoas. Até o início da idade adulta eu também fiz acompanhamento psicológico, enquanto estava na graduação. Quando consegui trabalhar meus traumas e me aceitar, criei um perfil no Instagram com o objetivo de desmitificar a surdez, ajudar as famílias, estimular as crianças e os adolescentes com surdez. Nem sempre é fácil. Mesmo com os estudos e as experiências vividas eu achava pouco, portanto fiz curso de Libras, Inglês e Espanhol; educação inclusiva; surdez; e outras áreas. Acabei fazendo também pós-graduação em saúde mental em dependência química, gestão de pessoas, Libras, surdez e Gestalt terapia. Atualmente faço mestrado em Neuropsicologia.
Atendi crianças e adolescentes com deficiências, aprendi muito com esse trabalho exercido, mas meu serviço está voltado hoje aos pais e profissionais que querem atuar na área ou conhecer mais sobre surdez infantil através de seminários, palestras e cursos online.
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– Luiza: Você pode contar para as psicólogas ouvintes como você identificava a ansiedade nas pessoas surdas?
– Camile: Na verdade é bem complicado porque, hoje em dia, estamos vendo um número crescente de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e as pessoas esquecem que há surdos. Quando a criança não atende o chamado, não fica quieta, não fala, não olha para o adulto, acham que é o TEA. Se olharmos direitinho, as características realmente se parecem. Se pontuados pela família, o profissional deve encaminhar a criança para um médico pediatra, neuro, e daí sim, fazer todo o procedimento. Depois desses, vai para fonoaudiólogo fazer audiometria. Se for um bebê ainda, faz logo o bera. Com esses exames feitos, vai para o psicólogo.
Não é fácil receber um diagnóstico e o trabalho do psicólogo entra aí para acolher e aceitar a família para trabalhar com a criança, perguntando o que de fato eles querem que façamos e deixando claro que o trabalho só vai em frente se a família estiver disposta a trabalhar junto, se querem escolher a identidade do filho. Quando a família aceita, a criança apresenta baixa ansiedade; mas se demora a aceitar esse diagnóstico, procurar ajuda ou escolher a identidade do filho (se quer surdo oralizado, implantado ou surdo mesmo), a ansiedade aumenta.
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– Luiza: Quais eram os principais desafios que as pessoas surdas têm? E você, como psicóloga surda oralizada que atende pessoas surdas?
– Camile: As pessoas surdas enfrentam muitos desafios. Primeiro a aceitação: sou um surdo ou não? Com a aceitação vem a identidade, a escolha de ser quem quer ser. Com essa escolha vem a autonomia, porque quando se tem essa base com o apoio dos pais, o surdo consegue enfrentar o capacitismo, o bullying, as discriminações, as exclusões sociais. Tudo isso afeta a saúde mental. Se sou aceito, sou saudável. Se não sou aceito, desenvolvo vergonha, timidez, entre alguns transtornos como Transtorno de Ansiedade Social (TAS), Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC)…
Eu, como pessoa surda, também passei por tudo isso. Inclusive posso dizer que me aceitei e escolhi minha identidade (que lá atrás foi escolhida pelos meus pais). Falo sem medo e sem vergonha de quem eu sou porque foram trabalhadas essas questões.
O meu trabalho é voltado para esse público. Já atendi dois surdos adultos em que os dois traziam como demanda “eu me aceito e aceito a vida que eu levo, mas meus pais não querem isso, querem que eu seja como você”. Eu tive que trabalhar a dinâmica familiar, a identidade e a escolha deles, para que os pais pudessem aceitar as escolhas deles também. Foi desafiador porque atendi de maneira online dois adultos que já sabiam o que eles queriam, já tinham feitos suas escolhas e, infelizmente, os pais não aceitaram de prontidão.
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– Luiza: Como você superou os seus desafios profissionais, Camile?
– Camile: Eu acredito que ainda não cessaram os desafios, eles ainda existem.
O primeiro é que não há um reconhecimento da minha profissão. Acham que é impossível ser psicólogo e ser surdo ao mesmo tempo. Eu lembro de quando eu ainda estava na graduação e a professora disse que uma das abordagens não era para mim. Outra professora me chamou para ser aluna de estágio dela e foi aí que entendi que eu posso escolher o lugar que quero ocupar porque não há limites. O limite quem dá é a própria pessoa.
O segundo desafio foi atender crianças com deficiência. Por ser surda, eu ficava na dúvida se era para dizer isso para os pais no primeiro momento. Aprendi que depende do caso. Eu lembro que a primeira criança que eu falei sobre a minha surdez simplesmente disse “não tem o que se desculpar, para mim você é uma pessoa normal, isso aí não é nada”; porque eu não tinha entendido a fala dela e pedi para repetir. Ela repetiu e acrescentou isso porque expliquei quem eu era…
Assim foram os meus atendimentos, não foi vergonhoso, não foi o fim do mundo. Os pais aceitaram e as crianças também. Tanto é que eles só lembrava da minha surdez quando eu trocava as pilhas dos meus aparelhos. O interessante é que eles pediam para usar os meus aparelhos, eu mostrava e eles ficavam com os olhos brilhando.
Uma palavra define esse trabalho: coragem. Para mim, não adianta tantos estudos, tantas estratégias, se não tiver sensibilidade de acolher o seu eu para entender o outro.
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– Luiza: Você pode contar um pouco sobre um atendimento que fez e que te marcou?
– Camile: Nossa… Eu tenho muitos. Até adiantei um pouco falando da minha experiência antes.
Ainda na graduação, eu tinha muitas dúvidas se o meu lugar era na clínica e a minha professora na época dizia que eu tinha muito potencial para atendimento clínico com crianças e adolescente com deficiência, então aceitei. Eu não vou mentir, tive muito medo e muita insegurança. até que uma dia eu prendi meu cabelo para brincar com uma criança que tinha deficiência intelectual. Ela viu o meu aparelho e não disse nada. Ela virou de costas e falou alguma coisa que não entendi, então eu me virei para frente dela e perguntei se poderia repetir porque eu era surda e usava dois aparelhos. Essa criança me abraçou e repetiu a fala. Daí eu indaguei se tinha algum problema eu ser surda. Ela prontamente disse que não tinha problema, que eu era normal para ela.
O segundo que me marcou foi do atendimento online de uma adolescente também surda. Ela dizia que queria ser como eu, que falava e ouvia, então eu chamei a mãe e perguntei se ela estava disposta a fazer um acompanhamento fonoaudiológico. A mãe se assustou e, depois que aceitou, chorou muito porque quando ela quis que a filha falasse e usasse aparelhos auditivos a filha não desenvolveu nenhuma melhora. Dessa vez, porém, deu certo e fizemos o acompanhamento.
O terceiro atendimento que me marcou foi o de uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno Desafiador Opositor (TOD). Teve um momento da sessão que tive que trocar as pilhas dos meus aparelhos na frente dele e ele simplesmente parou de fazer o que estava fazendo e ficou me observando. Quando coloquei meus aparelhos de volta, ele pediu para ver e pegar. Eu deixei. Ele experimentou e disse para a mãe que ouviu mais do que devia nesse dia por conta dos aparelhos.
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– Luiza: Existem mitos sobre a surdez que você gostaria de esclarecer?
– Camile: Tem tantos! Vou citar alguns que são bastante recorrentes.
1. O surdo é mudo: Isso é um mito porque uma pessoa que apresenta perda auditiva tem cordas vocais, balbucia e grita mesmo que não tenha feito tratamento com fonoaudiólogo.
2. Deficiente auditivo: Não se usa mais a palavra “deficiente” porque a as pessoas com perda auditiva têm uma identidade como comunidade de pessoas que usam a língua brasileira de sinais.
3. Libras é uma linguagem de mímica: Isso é mentira porque a Libras é uma língua criada para as pessoas se comunicarem. Tem estrutura, tem semântica, tem sentido, em que usamos as expressões faciais para mostrar como estamos nos sentindo.
4. O surdo é incapaz: Mentira também. Todos têm capacidade, inteligência e vontade para aprender.
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-Luiza: Como as psicólogas ouvintes podem ajudar as pessoas surdas a reduzirem a ansiedade? Há diferenças do atendimento de pessoas não surdas?
– Camile: Tem que estudar sobre a surdez, inclusão e Libras. Com esses conhecimentos se vai longe, mas o mais importante é ser sensível e entender que cada pessoa tem o seu mundo e seu jeito particular de ver as coisas. Tem gente que pensa que “todo surdo é igual”, mas não é. Cada um tem o seu grau de perda, suas vivências e experiências, seu ponto de vista e sua história. Quando um profissional ouvinte quer atender um surdo, tem que avaliar qual é a surdez e a dinâmica familiar, se é surdo mesmo, se é surdo oralizado, surdo implantado, surdo poliglota, surdo que usa aparelhos auditivos, para aplicar suas técnicas e manusear os atendimento.
E sim, há uma diferença por conta da identidade. Se for um surdo, será utilizado Libras. Se forem outras classificações, será necessário fazer menção a ficar na frente do mesmo para que ele faça a leitura labial.
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– Luiza: Você acredita que diferentes profissionais de saúde podem contribuir com a redução da ansiedade das pessoas surdas?
– Camile: Sim, todo mundo pode ajudar uma pessoa surda. Isso se chama inclusão e empatia. Quando você ver um surdo, você pode ajudar. Na farmácia, por exemplo, se o surdo quer comprar um remédio, não tem conhecimento do português e não recebe atendimento mesmo com a receita médica, ele pode ficar frustrado e pensar “ninguém me entende, eu sou um excluído”. Se um atendente, porém, ver que na mão do surdo tem uma receita e ele vai lá, lê a receita e dá o remédio, o surdo vê que tem alguém que pode ajudar e não apresenta sintomas de baixa autoestima ou desvalorização. Eu trouxe uma situação corriqueira. Imagine como os profissionais podem contribuir com esse sujeito – não só os da saúde, mas também da educação. A exclusão do sujeito é o início de uma ansiedade da pessoa surda, portanto, começa na educação. Na saúde devemos dar seguimento à inclusão. Todos são pertinentes em uma equipe multiprofissional.
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– Luiza: Que profissional já contribuiu com você e os clientes surdos ansiosos?
– Camile: A fonoaudióloga Nailma Arraes, que atende surdos e faz implante coclear; a psicopedagoga Lorena Moreira e o estudante de Letras Guilherme Freire (surdo oralizado também) ensinam sobre Libras e comunidade surda; os otorrinos Alberto Andrade e Guilherme Fenólio (especialista em cirurgia de ouvido); Gis Dantas, intérprete de Libras; Soraya Silva, assistente social; Adailson Miranda, professor de educação; e Marcos Souza, professor de yoga.
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– Luiza: Camile, qual é a principal mensagem que você deixa para as psicólogas ouvintes?
– Camile: Um trabalho bem feito é com uma equipe multiprofissional, porque sozinho ninguém consegue ajudar o mundo. Esse trabalho que falo é de uma inclusão vivida, tirada do papel. Abrace essa comunidade porque eles ensinam mais do que aprendem. Nós somos eternos aprendizes.
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– Luiza: Muito obrigada por participar do episódio dez do podcast “Ansiedade em foco”. Como as psicólogas podem te encontrar na internet, Camile?
– Camile: Muito obrigada mais uma vez! O meu trabalho é totalmente online e voltado para profissionais que querem trabalha na área da educação ou saúde, assim como famílias que precisam de orientação para essa demanda. Meu instagram é @psicamilecosta. Lá tem informações pertinentes sobre essas questões. Deus abençoe a todos.
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Psi, espero que você tenha gostado de conhecer a Camile e aprender sobre como atender os clientes surdos ansiosos.
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Nos reencontramos no sábado, dia 23 de novembro, às 13h de Brasília, para o episódio Psi, você sabe como a ansiedade impacta a saúde mental dos homens?” com o psicólogo Leandro Flávio Machado de Lima (CRP 04/60834).
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Luiza Aguiar Soares
Psicóloga | CRP 04/65266
Texto publicado em 13/11/2024